No dia 17 de maio de 2016, no Red Carpet no Festival de
Cannes, Kleber Mendonça Filho, Sônia Braga e todo o elenco do filme “Aquarius”
fez um protesto que tomou proporções que talvez ninguém esperaria. O
elenco e equipe do filme, encabeçados por Kleber e Sônia, levantaram cartazes
em que denunciavam a atual situação política no Brasil. Para o elenco e equipe
envolvida no filme, o processo de Impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff era
um golpe de estado. Os artistas entenderam, e muito bem, que a visibilidade do
Festival de Cannes, poderia fazer o mundo olhar para o Brasil, e ver a situação
lastimável que se encontrava, e ainda encontra a política Brasileira.
“Aquarius”: O Filme
Clara (Sonia Braga) tem 65 anos, é jornalista aposentada,
viúva e mãe de três adultos. Ela mora em um apartamento localizado na Av. Boa
Viagem, no Recife, onde criou seus filhos e viveu boa parte de sua vida.
Interessada em construir um novo prédio no espaço, os responsáveis por uma
construtora conseguiram adquirir quase todos os apartamentos do prédio, menos o
dela. Por mais que tenha deixado bem claro que não pretende vendê-lo, Clara
sofre todo tipo de assédio e ameaça para que mude de ideia.
Aparentemente simples, “Aquarius” é um dos mais importantes,
complexos e profundo filme brasileiro dos últimos anos. O filme trata de
lembranças, lutas, ideais, opressão e conquistas. Escrito por Kleber Mendonça, o
roteiro de “Aquarius” é uma verdadeira odisseia, que te faz parar, pensar
e refletir para o caminho em que estamos indo. O roteiro nos faz questionar se
vale a pena certas atitudes, se vale a pena lutar, e até que ponto estamos
dispostos a nos rebaixar ao nível de nossos opositores, para defender nossos
ideais. Kleber de maneira simples, levanta esses questionamentos que incomodam
e nos fazem sair da projeção do filme com uma outra visão do filme.
Com cenas memoráveis, edição cuidadosa e cinematografia perfeita,
Kleber faz de “Aquarius” um filme inesquecível. Assim como em “O
Som ao Redor”, em que o som era importante na composição da história,
em “Aquarius”
não é diferente o som faz parte da história, mas de
forma diferente. Enquanto em “O Som ao Redor” Kleber faz o uso
dos sons diegéticos para contar a história, aqui música conta a história. As
músicas ouvidas por Clara em todo o filme mostram exatamente o que ela está
sentindo, ou o que ela quer dizer. Além do som, as imagens são fundamentais
para a construção da história. Nesse ponto, Kleber se mostra um diretor ainda
mais maduro, que só faz uso do que realmente importa, nada está ali por acaso,
tudo tem um motivo.
Mas com certeza o que torna “Aquarius” inesquecível é
Sônia Braga. A atriz que andava em baixa, tem um retorno retumbante as telonas,
com o seu melhor personagem. Com Clara, Sônia deixará de ser a eterna Gabriela
ou a Dona Flor, e entra para o Hall das atuações mais memoráveis da história do
cinema. Sônia apenas com o olhar consegue dizer tudo. Um gesto, um sorriso, um
olhar, diz muito mais aqui do que palavras. Sônia criou uma personagem
batalhadora, determinada, que acredita nos seus ideais, e que mesmo que pareça
que estar errada, você fica do lado dela, porque ela é cativante, mas acima de
tudo ela é humana. Clara é ao lado de Val de “Que Horas Ela Volta?”, a
personagem mais importante dos últimos anos no cinema nacional. Batalhadoras e
determinadas, elas traçam um perfil da mulher brasileira, que luta para
conseguir o que acredita, e luta para o bem de sua família, mesmo que isso
envolva sofrer. E Sônia consegue com maestria fazer de Clara não uma velha de
65 anos, mas uma mulher forte e determinada que vai à luta e em busca do que
acredita.
“Aquarius”: As Possibilidades
Todo aquele que assistir “Aquarius”, e todos devem
assistir, verá a sua frente, duas possiblidades. Uma explícita e menos
política, e uma outra implícita e extremamente política. Essa visão vai
depender muito de quem você é, de qual a sua formação.
A primeira visão explicita, é a de uma construtora que quer
a todo custo “revitalizar” uma grande cidade, com prédios modernos e luxuosos.
Essas construtoras, sem pensar no patrimônio cultural e histórico das cidades
envolvidas, destroem casarões, prédios, praças, matas, espaços públicos e
históricos, única e exclusivamente para ganhar mais dinheiro. E isso é
ilustrado pelo filme. Logo no início vemos fotos de Recife, da orla, de como a
cidade era no século passado. Quando vamos para a atualidade, somos jogados
numa cidade moderna, em que os prédios históricos são substituídos por prédios
modernos e luxuosos. Só permanece ali Clara e Aquarius. Eles são o símbolo da
resistência contra aqueles que lutam contra o patrimônio histórico de uma
cidade.
E diferente do que muitos pensam, essas pessoas, não são
avessas a modernidade, mas são a favor de se manter o patrimônio histórico
intacto. São lembranças, histórias e tradições que vão prédio abaixo quando um
desses é implodido. Nesse ponto, “Aquarius” se torna universal, ao
mostrar até que ponto as grandes corporações são capazes de ir para conseguir
seus objetivos, e o quanto estão preocupadas com o patrimônio histórico e
cultural do seu povo. “Aquarius” dessa forma, é um filme universal, que fala
com todos os povos, em especial aqueles que lutam para a permanência de uma
cultura que aos poucos vai deixando de existir.
A segunda visão de “Aquarius” é implícita e
extremamente política. A trajetória de Clara faz um paralelo com o da
ex-Presidente Dilma. Um paralelo com tudo que ela passou até chegar ao processo
de Impeachment. Clara é a personificação de Dilma e sua luta para não perder o que
por de direito é dela. Assim como Dilma, Clara se recuperou de um câncer. Não
apenas se recuperou, mas se tornou mais forte. Ambas “herdaram” algo de um
mentor, alguém que foi importante em suas vidas, e que lhes fizeram ser quem
são. No caso de Dilma, temos Lula e a presidência da república, e no caso de
Clara, tia Lúcia e o apartamento no edifício Aquarius. E é a “herança” de seus
mentores, que seus opositores querem tirar a todo custo.
Enquanto Dilma lutava contra o PSDB, PMDB, DEM e muitos
outros, Clara lutava contra a construtora que queria a todo custo lhe retirar o
apartamento. E assim como a construtora usava métodos baixos e absurdos para
tomar o apartamento de Clara, os oponentes de Dilma usaram de argumentos baixos
para tirá-la do poder. Políticos que assim como Diego, o engenheiro da
cosntrutora, pareciam bondosos, educados e compreensivos, dispostos ao diálogo,
mas depois de algum tempo se mostram ser o pior de todos eles.
Mas assim como Dilma, Clara não desistiu, lutou até o fim,
com o apoio de poucos, mas lutou. Clara está para Dilma assim como o apartamento
no edifício Aquarius está para presidência da república. Em forma metafórica
Kleber conseguiu mostrar um pouco do circo que virou a política Brasileira. Uma
política que é capaz de usar de métodos baixos, sujos e ilegais, tal qual a
orgia que ocorre no apartamento de cima ao de Clara, ou a contaminação feita no
edifício, para conseguir seus objetivos.
"Aquarius": O retrato do País
“Aquarius” é sem dúvida nenhuma o filme mais importante para o
cinema nacional desde “Cidade de Deus”. Um filme que é simples
porém complexo e profundo, que mostra o retrato da situação que vivemos. Onde
não podemos nem sequer fazer um protesto, não podemos falar nada contrário a
maioria ou fazer algo diferentes, que já somos apedrejados.
Veja o caso do protesto em Cannes. Após esse protesto “Aquarius”
sofreu boicote. O órgão responsável pela classificação etária no Brasil,
classificou o filme como 18 anos. E apena após protestos, ela foi reduzida para
16 anos. Essa classificação 18 anos não se fazia justa, as cenas de nudez do
filme, são tão curtas que não fazem diferença nenhuma de tantos outros filmes
com cenas bem mais pesadas e fortes com classificação 16 anos. O filme ainda
sofreu boicote de pessoas favoráveis ao Impeachment, chegando ao ponto de “sites
de notícia” noticiar falsamente o fracasso nas bilheterias de “Aquarius”.
Enquanto o filme fez mais de 340 mil
telespectadores, para um filme nacional que não é uma comédia global, é um
feito e tanto.
E claro, como esquecer a escolha do MINC de “Pequeno
Segredo” para concorrer a uma vaga ao Oscar ao invés de “Aquarius”?
Uma escolha um tanto quanto equivocada, quando se vê a carreira de “Aquarius”
no exterior, que acaba de ser indicado ao Independent Spirit Award de Melhor
Filme Estrangeiro. Claramente a escolha foi política e uma retaliação ao
protesto em Cannes.
Esses casos mostram claramente o quanto “Aquarius” é atual e real,
uma metáfora para a situação atual em que vivemos. Por exemplo, no filme, Clara
pinta a fachada do prédio, e é notificada sobre isso, porque pintou a fachada
sem a autorização dos condôminos. Na vida real, a equipe faz um protesto
totalmente válido e lícito, e sofre retaliação do governo. E a liberdade de
expressão e escolha onde fica?
Conclusão
“Aquarius” com polêmicas e êxitos, é sem dúvida nenhuma o filme
mais importante do cinema nacional dos últimos anos. Além de discutir temas
atuais da nossa política, discute temas universais que afetam o mundo todo.
Kleber conseguiu com maestria nos entregar um filme que é universal sem deixar
de ser uma visão do Brasil atual, um filme simples mas complexo, e extremamente
político sem levantar uma bandeira partidária. Sônia nos entregou sua melhor performance
de sua longa carreira, e colocando Clara no Hall de grandes personagens do
cinema mundial.
Se a retomada do cinema nasceu com “Carlota Joaquina: A Princesa do
Brasil” de 1995, em 2016 vinte um anos depois o cinema nacional chega a
maioridade com “Aquarius”.