domingo, 27 de novembro de 2016

A Odisséia de “Aquarius”




No dia 17 de maio de 2016, no Red Carpet no Festival de Cannes, Kleber Mendonça Filho, Sônia Braga e todo o elenco do filme “Aquarius” fez um protesto que tomou proporções que talvez ninguém esperaria. O elenco e equipe do filme, encabeçados por Kleber e Sônia, levantaram cartazes em que denunciavam a atual situação política no Brasil. Para o elenco e equipe envolvida no filme, o processo de Impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff era um golpe de estado. Os artistas entenderam, e muito bem, que a visibilidade do Festival de Cannes, poderia fazer o mundo olhar para o Brasil, e ver a situação lastimável que se encontrava, e ainda encontra a política Brasileira.

Esse ato totalmente lícito, válido e de importância primordial para a liberdade de escolha e para a democracia, foi visto por muitos como exagero, alguns criticaram, outros aplaudiram a atitude de Kleber, Sônia e todos os envolvidos no filme. Esse protesto foi apenas o começo de uma odisseia na qual “Aquarius” entrou, e a cada premiação, festival e indicação que o filme ganha, um novo capítulo é escrito. Dessa forma o filme se tornou um símbolo da polaridade política existente atualmente no país. Se você o ama é petralha e se o odeia é coxinha.


“Aquarius”: O Filme

Clara (Sonia Braga) tem 65 anos, é jornalista aposentada, viúva e mãe de três adultos. Ela mora em um apartamento localizado na Av. Boa Viagem, no Recife, onde criou seus filhos e viveu boa parte de sua vida. Interessada em construir um novo prédio no espaço, os responsáveis por uma construtora conseguiram adquirir quase todos os apartamentos do prédio, menos o dela. Por mais que tenha deixado bem claro que não pretende vendê-lo, Clara sofre todo tipo de assédio e ameaça para que mude de ideia.
 
Aparentemente simples, “Aquarius” é um dos mais importantes, complexos e profundo filme brasileiro dos últimos anos. O filme trata de lembranças, lutas, ideais, opressão e conquistas. Escrito por Kleber Mendonça, o roteiro de “Aquarius” é uma verdadeira odisseia, que te faz parar, pensar e refletir para o caminho em que estamos indo. O roteiro nos faz questionar se vale a pena certas atitudes, se vale a pena lutar, e até que ponto estamos dispostos a nos rebaixar ao nível de nossos opositores, para defender nossos ideais. Kleber de maneira simples, levanta esses questionamentos que incomodam e nos fazem sair da projeção do filme com uma outra visão do filme.



Com cenas memoráveis, edição cuidadosa e cinematografia perfeita, Kleber faz de “Aquarius” um filme inesquecível. Assim como em “O Som ao Redor”, em que o som era importante na composição da história, em “Aquarius” não é diferente o som faz parte da história, mas de forma diferente. Enquanto em “O Som ao Redor” Kleber faz o uso dos sons diegéticos para contar a história, aqui música conta a história. As músicas ouvidas por Clara em todo o filme mostram exatamente o que ela está sentindo, ou o que ela quer dizer. Além do som, as imagens são fundamentais para a construção da história. Nesse ponto, Kleber se mostra um diretor ainda mais maduro, que só faz uso do que realmente importa, nada está ali por acaso, tudo tem um motivo.

Mas com certeza o que torna “Aquarius” inesquecível é Sônia Braga. A atriz que andava em baixa, tem um retorno retumbante as telonas, com o seu melhor personagem. Com Clara, Sônia deixará de ser a eterna Gabriela ou a Dona Flor, e entra para o Hall das atuações mais memoráveis da história do cinema. Sônia apenas com o olhar consegue dizer tudo. Um gesto, um sorriso, um olhar, diz muito mais aqui do que palavras. Sônia criou uma personagem batalhadora, determinada, que acredita nos seus ideais, e que mesmo que pareça que estar errada, você fica do lado dela, porque ela é cativante, mas acima de tudo ela é humana. Clara é ao lado de Val de “Que Horas Ela Volta?”, a personagem mais importante dos últimos anos no cinema nacional. Batalhadoras e determinadas, elas traçam um perfil da mulher brasileira, que luta para conseguir o que acredita, e luta para o bem de sua família, mesmo que isso envolva sofrer. E Sônia consegue com maestria fazer de Clara não uma velha de 65 anos, mas uma mulher forte e determinada que vai à luta e em busca do que acredita.


“Aquarius”: As Possibilidades

Todo aquele que assistir “Aquarius”, e todos devem assistir, verá a sua frente, duas possiblidades. Uma explícita e menos política, e uma outra implícita e extremamente política. Essa visão vai depender muito de quem você é, de qual a sua formação.

A primeira visão explicita, é a de uma construtora que quer a todo custo “revitalizar” uma grande cidade, com prédios modernos e luxuosos. Essas construtoras, sem pensar no patrimônio cultural e histórico das cidades envolvidas, destroem casarões, prédios, praças, matas, espaços públicos e históricos, única e exclusivamente para ganhar mais dinheiro. E isso é ilustrado pelo filme. Logo no início vemos fotos de Recife, da orla, de como a cidade era no século passado. Quando vamos para a atualidade, somos jogados numa cidade moderna, em que os prédios históricos são substituídos por prédios modernos e luxuosos. Só permanece ali Clara e Aquarius. Eles são o símbolo da resistência contra aqueles que lutam contra o patrimônio histórico de uma cidade.

E diferente do que muitos pensam, essas pessoas, não são avessas a modernidade, mas são a favor de se manter o patrimônio histórico intacto. São lembranças, histórias e tradições que vão prédio abaixo quando um desses é implodido. Nesse ponto, “Aquarius” se torna universal, ao mostrar até que ponto as grandes corporações são capazes de ir para conseguir seus objetivos, e o quanto estão preocupadas com o patrimônio histórico e cultural do seu povo. “Aquarius”  dessa forma, é um filme universal, que fala com todos os povos, em especial aqueles que lutam para a permanência de uma cultura que aos poucos vai deixando de existir.


A segunda visão de “Aquarius” é implícita e extremamente política. A trajetória de Clara faz um paralelo com o da ex-Presidente Dilma. Um paralelo com tudo que ela passou até chegar ao processo de Impeachment. Clara é a personificação de Dilma e sua luta para não perder o que por de direito é dela. Assim como Dilma, Clara se recuperou de um câncer. Não apenas se recuperou, mas se tornou mais forte. Ambas “herdaram” algo de um mentor, alguém que foi importante em suas vidas, e que lhes fizeram ser quem são. No caso de Dilma, temos Lula e a presidência da república, e no caso de Clara, tia Lúcia e o apartamento no edifício Aquarius. E é a “herança” de seus mentores, que seus opositores querem tirar a todo custo.

Enquanto Dilma lutava contra o PSDB, PMDB, DEM e muitos outros, Clara lutava contra a construtora que queria a todo custo lhe retirar o apartamento. E assim como a construtora usava métodos baixos e absurdos para tomar o apartamento de Clara, os oponentes de Dilma usaram de argumentos baixos para tirá-la do poder. Políticos que assim como Diego, o engenheiro da cosntrutora, pareciam bondosos, educados e compreensivos, dispostos ao diálogo, mas depois de algum tempo se mostram ser o pior de todos eles.

Mas assim como Dilma, Clara não desistiu, lutou até o fim, com o apoio de poucos, mas lutou. Clara está para Dilma assim como o apartamento no edifício Aquarius está para presidência da república. Em forma metafórica Kleber conseguiu mostrar um pouco do circo que virou a política Brasileira. Uma política que é capaz de usar de métodos baixos, sujos e ilegais, tal qual a orgia que ocorre no apartamento de cima ao de Clara, ou a contaminação feita no edifício, para conseguir seus objetivos.



"Aquarius": O retrato do País

“Aquarius” é sem dúvida nenhuma o filme mais importante para o cinema nacional desde “Cidade de Deus”. Um filme que é simples porém complexo e profundo, que mostra o retrato da situação que vivemos. Onde não podemos nem sequer fazer um protesto, não podemos falar nada contrário a maioria ou fazer algo diferentes, que já somos apedrejados.

Veja o caso do protesto em Cannes. Após esse protesto “Aquarius” sofreu boicote. O órgão responsável pela classificação etária no Brasil, classificou o filme como 18 anos. E apena após protestos, ela foi reduzida para 16 anos. Essa classificação 18 anos não se fazia justa, as cenas de nudez do filme, são tão curtas que não fazem diferença nenhuma de tantos outros filmes com cenas bem mais pesadas e fortes com classificação 16 anos. O filme ainda sofreu boicote de pessoas favoráveis ao Impeachment, chegando ao ponto de “sites de notícia” noticiar falsamente o fracasso nas bilheterias de “Aquarius”.  Enquanto o filme fez mais de 340 mil telespectadores, para um filme nacional que não é uma comédia global, é um feito e tanto.

E claro, como esquecer a escolha do MINC de “Pequeno Segredo” para concorrer a uma vaga ao Oscar ao invés de “Aquarius”? Uma escolha um tanto quanto equivocada, quando se vê a carreira de “Aquarius” no exterior, que acaba de ser indicado ao Independent Spirit Award de Melhor Filme Estrangeiro. Claramente a escolha foi política e uma retaliação ao protesto em Cannes.
Esses casos mostram claramente o quanto “Aquarius” é atual e real, uma metáfora para a situação atual em que vivemos. Por exemplo, no filme, Clara pinta a fachada do prédio, e é notificada sobre isso, porque pintou a fachada sem a autorização dos condôminos. Na vida real, a equipe faz um protesto totalmente válido e lícito, e sofre retaliação do governo. E a liberdade de expressão e escolha onde fica?



Conclusão

“Aquarius” com polêmicas e êxitos, é sem dúvida nenhuma o filme mais importante do cinema nacional dos últimos anos. Além de discutir temas atuais da nossa política, discute temas universais que afetam o mundo todo. Kleber conseguiu com maestria nos entregar um filme que é universal sem deixar de ser uma visão do Brasil atual, um filme simples mas complexo, e extremamente político sem levantar uma bandeira partidária. Sônia nos entregou sua melhor performance de sua longa carreira, e colocando Clara no Hall de grandes personagens do cinema mundial.

Se a retomada do cinema nasceu com “Carlota Joaquina: A Princesa do Brasil” de 1995, em 2016 vinte um anos depois o cinema nacional chega a maioridade com “Aquarius”.